Raul Lody
O Mito da Feijoada
09.01.2013
A monocultura da cana sacarina fez com que o brasileiro comesse muito mal durante o Brasil Colônia, como dizia Gilberto Freyre, apesar dele ser um entusiasta do doce, e do açúcar.
A “plantation” de cana sacarina formava um sistema de produção agrícola quase que exclusiva, e visava a produção e exportação do açúcar para a Europa. Esta vastidão de canaviais, no Nordeste, desmatou a Mata Atlântica. Isto fez com que vigorasse uma agricultura de subsistência e familiar, onde se cultivava, em especial, a mandioca, o milho, a abóbora e o feijão.
Aliadas aos engenhos de açúcar estavam as casas de farinha para dar de comer aos trabalhadores e aos senhores. Há, sem dúvida, uma civilização da mandioca na formação do paladar do brasileiro. Mandioca, a comida possível.
Pirões feitos com farinha de mandioca e farinha de milho, comidas para a maioria; comidas para dar saciedade, para encher o “bucho”. E, complementando, quando possível: peixe seco e salgado, frutas nativas; e outros alimentos que chegavam conforme as oportunidades.
Nessa concepção da comida como algo precioso, segue-se um princípio clássico e fundamental que é o de não desperdiçar nada, e aproveitar tudo.
Sempre se valorizou muito as carnes. Certamente são memórias ancestrais dos caçadores, provedores; e assim das aves, suínos, caprinos, ovinos e o gado vacum, tudo era aproveitado além da carne; vísceras, cabeça, pés, sangue; e tudo que pudesse ser comestível.
Esse princípio do aproveitamento da comida permeia todos os povos, respeitando-se, entretanto, as suas características culturais e religiosas na hora de selecionar os alimentos. Por exemplo, muçulmanos e judeus não comem carne de porco. Já os cristãos são verdadeiramente onívoros.
E a orientação de que tudo se aproveita está presente nas receitas com tripas, com vísceras, e com os muitos tipos de embutidos com peles, cartilagens e sangue.
Do gado vacum, há uma prioridade para o leite e os seus produtos derivados, a carne tem, na maioria das vezes, um uso muito especial, à época do Brasil colônia.
A técnica da carne seca e salgada, a cultura do “charque”, amplia o comércio e a relação entre o sul do Brasil e o Nordeste.
A isso se une o hábito de comer feijão. Feijão verde cozido na água e sal; feijão branco com tripas; feijão para acompanhar as carnes salgadas; feijão em forma de feijoada; cardápios especiais.
Nas versões mais simples do feijão preto, apenas com um pedaço de charque e um pouco de farinha. Na versão do feijão “rico”, que os baianos chamam de feijoada “bordada”, ela vem repleta de insumos animais; tudo o que o porco puder contribuir, diga-se ele inteiro ou relido em partes salgadas.
Feijões para o dia a dia; feijões para as celebrações. Maneiras de comemorar, de reunir, de viver a comensalidade com a fartura que as feijoadas oferecem. Pois a feijoada é um prato para se comer com muita gente, tem que ser feita no panelão.
Daí aquele convite clássico do brasileiro: vem comer um feijão aqui em casa; o que significa comer feijão ou comer qualquer outra comida, pois o feijão está no nosso imaginário quase como sinônimo de alimento.
Assim, essa leguminosa ganha seus diferentes sentidos e sentimentos para a mesa brasileira: é o feijão nosso de cada dia.
Por tudo isso, uma das maiores invenções com o feijão é a feijoada, que passou a ser conhecida como uma “comida de senzala”, certamente por causa da forte adesão de técnicas culinárias e de possibilidades gastronômicas que a presença da mão africana doou para esta receita e para a mesa brasileira.
Há ainda aquela conversa de que “os senhores de engenhos” não comiam as partes menos nobres dos animais, vísceras; e assim essas partes seguiam para os pratos dos africanos em condição escrava.
Nessa mitologia, iam para as mesas dos “brancos” somente as carnes, e para as mesas dos “negros” as vísceras, as orelhas, os pés, o rabinho do porco, entre outras partes.
Aliada a essa conversa, também há a fantasia sobre a “cozinha da senzala”, com “africanas” com lindos turbantes, panos da costa, sempre cantando e cozinhando, e ao longe o som dos “batuques”, talvez uma capoeira, uma “umbigada”, fazem parte da idealização dessa mitologia, que não faz parte historicamente da verdade e da crueldade da “escravidão”.
A cozinha ibérica é marcada pelo aproveitamento de tudo que se pode consumir dos animais que vão à mesa. Embutidos feitos com as gorduras, o sangue, as cartilagens; a técnica da “cabidela” para aves, caprinos, suínos; sarapatel, sarrabulho; buchadas, meninicos; tripas “à moda do Porto”; e tantas e tantas outras receitas que atestam esse estilo marcante, no mundo, do aproveitamento de todas as partes do animal.
Agora que na feijoada é popular, isso é a mais pura verdade.
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